-Sim, se ao menos conseguisse deixar de sonhar por um momento que fosse, talvez então pudéssemos falar. Mas falar de quê?
E fez menção de se ir embora, com um encolher de ombros. Mas Marcellin impediu-o de se afastar, puxando-lhe pelo casaco, e pediu:
-Oiça, sei muito bem que não sei pensar. Sou poeta. Mas não sei pensar. Nunca me ensinaram. Estão sempre a meter-se comigo por causa disso. Quando oiço os meus amigos em grandes discussões filósóficas, quem me dera poder participar também, mas é tudo demasiado rápido para mim. Dizem-me para ler Platão, os Upanishads, Kierkegaard, Espinosa, Hegel, Benjamin Fondane, o Tao, Karl Marx, e até a Bíblia. Bem me esforcei por ler iss tudo, menos a Bíblia, pois acho que a referiram só por brincadeira. Quando estou a ler, parece-me tudo muito claro mas depois esqueço tudo, ou então não sei falar do que li, ou só encontro ideias contraditórias e não sei qual delas ecolher, enfim, a coisa não funciona.
A Grande Bebedeira de René Daumal, trad. Lurdes Júdice (dois dias edições)