(depois da recente (re)leitura do "Fausto", numa tradução extraordinária de João Barrento, torna-se bastante complicado seguir esta versão/visão do Sokurov- muito aquém das expectativas)
TNDM II
COMEÇA aqui a segunda parte, da qual nos basta sublinhar o plano geral.
Desde o momento em que o desespero de amor não levou Fausto a repelir a existência; desde que a curiosidade científica sobreviveu àquela morte do seu coração dilacerado, a tarefa de Mefistófeles torna-se mais dificil, e ouvi-lo-emos queixar-se com frequência. Fausto refrescou a alma e acalmou os sentidos no seio da natureza viva e das harmonias divinas da criação sempre tão bela. Resolveu-se a continuar a viver e a voltar para o meio dos homens. É no ponto mais esplêndido da multidão humana que ele vai descer desta vez.
A acção transporta-se para uma corte imperial da Idade Média. As personagens que aparecem não têm outros nomes que não os de «imperador», «chanceler», «marechal»,etc. O imperador, sentado entre os seus conselheiros, pergunta onde está o seu jogral. Um pajem vem dizer-lhe que o pobre homem se deixou cair ao descer uma escada. Está morto? Está embriagado? Não se sabe. Ele não se mexe.
Um segundo pajem vem logo anunciar que um segundo bobo se apresentou para o lugar do primeiro, e que está muito bem vestido, mas os alabardeiros não o deixam passar. (…)
FAUSTO de Johann W. Goethe, trad. R. Correia, Edições Amigos do Livro (início Segunda Parte)
PRIMEIRO ACTO
LUGAR AMENO
Fausto, deitado sobre a erva florida, cansado, inquieto, procurando o
sono. Crepúsculo. O círculo dos Espíritos pairando, agitados, figuras
pequenas e graciosas.
ARIEL (canto, acompanhado por harpas eólicas):
Quando em chuva de flores desce
Sobre o mundo a Primavera,
Verde bênção resplandece
P'ra todos os seres da Terra,
Os pequenos elfos vêm,
Magnânimos, ajudar:
Bom ou mau, para todo o homem
Sem sorte vai seu pesar.
Vós, que aéreos rondais estas cabeças,
Mostrai dos elfos a nobre natureza,
Do coração a dura luta apaziguando,
Do remorso afastando a seta amarga e ardente,
De horrores passados a alma lhe purgando.
Tem quatro pausas a vigília, e é urgente
Usá-las com amor, não hesitando.
Primeiro, deitai-lhe a fronte em fresco chão,
Banhai-o no orvalho que o Letes envia;
os membros hirtos logo despertarão,
Quando, refeito, descansa e espera o dia;
Cumpri dos elfos o dever
De à sagrada luz o trazer.
CORO (a uma, a duas e a várias vozes, em alternância, e uníssono):
Quando o ar morno se reclina
Sobre o plaino verdejante,
Doces odores e neblinas (…)
FAUSTO de Johann W. Goethe, trad. João Barrento, Relógio D’Água (início Segunda Parte)
POETA:
Para isso terás de me trazer
Os anos do meu próprio devir,
Quando uma fonte de canções a nascer
Brotava em mim sem se extinguir,
Quando névoas me escondiam o mundo
E inda o botão milagres prometia,
Quando eu as mil flores colhia
Que enchiam o vale até ao fundo.
Não tendo nada, bastante tinha então:
A sede de verdade e o gosto da ilusão.
Dá-me de novo as paixões sem temor,
A funda e dolorosa felicidade,
Do ódio a força, o poder do amor:
Traz-me de volta a minha mocidade! (p.35)
MEFISTÓFELES:
Já que outra vez, Senhor, a nós desceste,
Para saber o que há por cá de novo,
E como sempre com bons olhos me viste,
Assim me vês agora entre o Teu povo.
Perdão, que altos discursos não sei ter,
E pela assembleia vou ser escarnecido;
Meu tom patético far-te-ia rir,
Se o riso não tivesses já esquecido.
De sóis e mundos nada sei nem direi;
Que os homens se atormentam, disso sei.
O pequeno deus do mundo não mudou,
Desde o dia primeiro mui singular ficou.
Viveria melhor, se não fosse enganado
Pelo lampejo da luz com que o haveis dotado;
Razão lhe chama, e serve-lhe afinal
Para ser mais bicho que qualquer animal.
Parece-me, perdoe-me Vossa Graça,
Uma dessas cigarras que esvoaça,
Pernilonga, armada em saltitão,
Entoando na erva sempre a mesma canção.
Se ao menos se ficasse pelo prado!
Mas quer meter o nariz em todo o lado! (p.40)
FAUSTO:
Aqui estou eu: Filosofia,
Medicina e Jurisprudência,
E para meu mal até Teologia
Estudei a fundo, com paciência.
E reconheço, pobre diabo,
Que sei o mesmo, ao fim e ao cabo!
Chamam-me Mestre, Doutor, sei lá quê,
E há dez anos que o mundo me vê
Levando atrás de mim a eito
Fiéis discípulos a torto e a direito –
E afinal vejo: nosso saber é nada!
E de ficar com a alma amargurada.
Sei mais, é claro, que todos os patetas,
Mestres, doutores, escribas e padrecas;
Nem escrúpulos nem dúvidas eu temo,
E não receio nem Inferno nem demo –
Mas não me resta réstia de alegria,
Nem me iludo com vã sabedoria,
Nem creio que tenha nada a ensinar
À humanidade, que a possa salvar.
Também não tenho bens nem capitais,
Nem glórias ou honras mundanais.
Até um cão desta vida fugia!
Por isso me entreguei à magia,
Para ver se por força da mente
Tanto mistério se abre à minha frente;
Para que não tenha, com o fel que suei,
De dizer mais aquilo que não sei;
Para conhecer os segredos que o mundo
Sustentam no seu âmago mais fundo,
Para intuir forças vivas, sementes,
E largar as palavras indigentes.
Ah, viesses tu, doce luar,
Envolver minha última dor!
Tu, que por noites adentro
Esperei a esta banca, atento:
Sobre a livralhada babilónica
Vinhas, amiga melancólica!
Ah, pudesse eu por esses cumes
Andar sob teus brandos lumes,
Pairar em grutas com seres alados,
Ao teu crepúsculo errar pelos prados,
E, livre das névoas do saber,
Em teu orvalho renascer! (pp. 49-51)
MEFISTÓFELES:
Singela é a verdade que te digo.
Se esse pequeno e néscio mundo, o Homem,
Geralmente por um todo se toma –
Eu sou parte da parte que a princípio tudo era,
Uma parte da treva que a luz gera,
A luz altiva que agora, em acesa luta,
À luz altiva que agora, em acesa luta,
À Noite-mãe o primado disputa;
Mas em vão, pois embora esforçada,
Ela aos corpos permanece agrilhoada.
Dos corpos irradia, beleza aos corpos dá,
Um corpo basta para travar-lhe a jornada;
E a minha esperança é que, não tarda nada,
Também ela com os corpos morrerá. (p.90)
FAUSTO:
Em nenhum hábito deixarei de sentir
A dor da vida estreita que levar
Sou muito velho para só querer brincar,
E muito novo para sem ânsia existir.
Que tem o mundo hoje para me oferecer?
A renúncia! Deves renunciar:
É essa a eterna ladainha
Que a todos nos ouvidos ecoa
E que, uma vida inteirinha,
Uma voz rouca sem fim apregoa.
Acordo de manhã numa agonia,
E lágrimas amargas só me traz
O tempo que decorre, e em cada dia
Nem um desejo só me satisfaz;
Até do prazer o antegozo
Me estraga com espírito invejoso,
E do sopro criador da alma activa
Com mil esgares hostis também me priva.
E depois, quando a noite nos envolve
E eu no leito caio, angustiado,
Também então a inquietação revolve
Os sonhos que me deixam aterrado.
A divindade que em meu peito mora
Pode agitar-me a alma até ao fundo;
Em minhas forças manda, mas lá fora
Não tem poder sobre as rodas do mundo.
E assim a existência me é um peso.
A morte ansiada, a vida um ódio imenso. (p. 98-99)
FAUSTO:
Sinto que em vão acumulei em mim
Toda a riqueza do humano entendimento,
Mas quando paro e me sento, por fim,
Não jorra da minh’alma novo alento;
Nem a altura de um cabelo me elevei,
Nem do infinito mais me aproximei. (p.108)
INQUIETAÇÃO:
Aquele em quem eu me afundo,
De nada lhe serve o mundo;
Vive em treva permanente,
Sem aurora nem poente,
Por fora normal parece,
Dentro dele tudo escurece,
Os maiores tesouros que há,
Frio, ele os desprezará.
Cisma em sorte ou desventura,
Morre à míngua na fartura;
Coisa má ou alegria
Fica sempre p’ra outro dia;
Só no futuro a pensar,
Nunca nada há-de acabar. (p.538)
FAUSTO de Johann W. Goethe, trad. João Barrento, Relógio D’Água
PROMETEU- É aqui o meu mundo, o meu Todo!
Sinto aqui que sou eu;
Aqui todos os meus desejos incarnados
Em formas corporais.
O meu espírito mil vezes dividido
E todo inteiro nos meus queridos filhos.
(Entra Minerva)
PROMETEU- Pois ousas, ó minha deusa?
Ousas tu aproximar-te do inimigo de teu pai?
MINERVA- Honro meu pai,
E a ti amo-te, Prometeu!
PROMETEU- E tu és ao meu espírito
O que ele é a si mesmo;
Desde o princípio
Foram tuas palavras para mim a luz do céu!
Sempre como se a minh'alma a si mesma falasse,
A si se abriss
E as harmonias gémeas suas
Nela ressoassem, vindas dela.
Eis o que eram as palavras tuas.
E assim eu não era eu,
E uma divindade falava
Quando julgava falar eu;
E quando cria que falava a divindade,
Era eu que falava.
E assim contigo e comigo
Tão unido, tão íntimo,
Eterno para ti o meu amor!
MINERVA- E eu a ti presente eternamente!
PROMETEU- Como a luz doce do crepúsculo
Do sol desaparecido
Surge e sobe inundante
Além do escuro Cáucaso
E envolve a min'alma de quietude deleitosa,
Ausente mesmo a mim sempre presente,
Assim foram crescendo as minhas forças
Com cada hausto do teu ar celeste.
E que direiro
Se arrogam cobiçosos os altivos
Habitantes do Olimpo
Sobre as minhas forças?
São minhas, e meu é o uso delas.
Nem um só passo a mais
A favor do mais alto dos deuses!
Para eles? Existo eu para eles?
MINERVA-Assim o Poder pensa.
PROMETEU-Também eu, ó deusa, penso
E também sou poderoso.-
Outrora!- Não me viste muitas vezes
Em voluntária servidão
Carregar o fardo que eles
Com solene gravidade me punham sobre os ombros?
Não levei a cabo o trabalho,
Toda a tarefa, por ordem deles,
Porque supunha
Que eles viam o passado, o futuro
No presente,
E que o seu governo, a sua lei
Eram originária,
Desinteressada sabedoria?
MINERVA- Servias, para seres digno da liberdade.
PROMETEU- E por nada no mundo trocaria
Com o pássaro dos trovões,
E empunhar altivo os relâmpagos do amo
Em garras de escravo.
Que são eles? Que sou eu?
MINERVA- É injusto o teu ódio!
Aos deuses coube em sorte a duração
E poder e sabedoria e amor.
PROMETEU- Mas não têm tudo isso
Sozinhos!
Como eles, duro também.
Todos nós somos eternos!-
Do meu começo não me lembro,
A acabar não me sinto chamado, E não vejo o fim.
Sou pois eterno, porque sou!-
(...)
PROMETEU (Fragmento Dramático da Juventude) de Goethe, trad. Paulo Quintela, Coimbra (pp.32-35)